Jornal Combate
Portugal, 1974-1978
Em Portugal, depois do golpe militar de 25 de Abril de 1974, que pôs fim a meio século de fascismo e de regimes repressivos de direita, ocorreram durante um ano e meio transformações profundas, que remodelaram de cima a baixo uma grande parte da sociedade portuguesa. Os órgãos de informação de todo o mundo deram quotidianamente um grande destaque às notícias de Portugal, tanto devido à intensidade da luta como ao facto de subsistir na vizinha Espanha o regime direitista de Franco, sem que se soubesse qual seria o resultado dessas lutas e quais seriam as suas consequências à escala europeia. Afinal, Franco acabaria por morrer uma semana depois da resolução da crise portuguesa.
Na sequência do golpe militar os operários começaram a pôr em causa a autoridade no interior das fábricas, que sempre estivera estruturalmente ligada ao regime fascista, e foi neste vazio que surgiram as Comissões de Trabalhadores. Consoante o jogo de forças nas empresas, as Comissões ou se limitavam a exercer pressão sobre os patrões ou criavam uma estrutura administrativa paralela à administração patronal, acabando em muitos casos por substituí-la. Nas zonas operárias foram fundadas Comissões de Moradores, e as Comissões dirigiram quase todas as empresas e bairros até Novembro de 1975, quando um novo golpe militar reforçou a democracia parlamentar liberal e inseriu Portugal nas grandes correntes do capitalismo europeu.
Em 2006 são muito poucas as pessoas fora de Portugal a lembrar-se desses acontecimentos, já que durante a década seguinte Portugal foi paulatinamente preparado para aderir à União Europeia e à chamada democracia, e toda aquela experiência foi considerada uma tempestade num copo de água, acabando por ser convenientemente esquecida. No entanto, alguns acontecimentos recentes na América Latina, onde também existe a experiência da passagem do fascismo para a “libertação”, trouxeram um novo interesse pelo sucedido em Portugal durante a década de 1970. Podem-se considerar nesta perspectiva as rupturas ocorridas nas forças armadas, e os casos de países latino-americanos em que alguns batalhões do exército ajudaram à ocupação de fábricas ou de terras assemelham-se até certo ponto à experiência portuguesa, existindo um enorme potencial para um movimento de democracia directa da base. Na verdade, algumas das principais instituições, o exército e a polícia, estão divididas internamente, e tudo isto leva a recordar o caso português enquanto precursor de uma potencial desintegração de aparelhos de Estado ultra-repressivos. Por isso o objectivo deste site, onde todos os números do jornal Combate se encontram na íntegra, não é o de proceder a qualquer meditação ecléctica sobre o passado mas o de divulgar uma experiência com a qual ainda hoje se pode aprender.
Em 1974, depois da experiência inicial de empresas como a Sogantal e a Charminha, ocupadas e autogeridas pelos trabalhadores, que se encarregaram de todas as tarefas internas, o movimento alastrou a centenas ou mesmo milhares de fábricas. Na verdade, muitos patrões, assustados com a ousadia popular, fugiam do país, deixando as empresas abandonadas e o pessoal sem salários. Os trabalhadores começaram as ocupações como uma reacção de sobrevivência, e foi assim que tanto no sector industrial como no comercial surgiram empresas autogeridas, desde algumas muito pequenas até outras de enormes dimensões. Os latifúndios do sul do país também foram ocupados e cultivados colectivamente. Nos meados de 1975 uma porção muitíssimo considerável da economia portuguesa e da sociedade estava nas mãos dos trabalhadores e era directamente gerida por eles. Foi neste contexto que se publicou o jornal Combate. A criação deste jornal deveu-se originariamente a três membros de um antigo grupo clandestino marxista-leninista, os Comités Comunistas Revolucionários (CCRs), que resultara de uma cisão ocorrida em 1969 numa organização maoísta, o Comité Marxista-Leninista Português. A partir de 1972 alguns membros dos CCRs tinham começado a criticar o maoísmo e o modelo organizacional leninista, e cindiram dos CCRs em Abril de 1974.
O primeiro número do Combate, junto com o Manifesto inaugural, data de 21 de Junho de 1974, e o último, nº 51, data de Fevereiro de 1978. Os primeiros dez números do Combate tiveram uma periodicidade semanal e beneficiaram de uma distribuição muito ampla. Do nº 11 (22 de Novembro de 1974) até ao nº 47 (22 de Outubro de 1976) a periodicidade foi praticamente quinzenal, com algumas lacunas. O contragolpe de Novembro de 1975, destinado a estabelecer uma democracia representativa assente numa constituição, deu lugar a uma orientação política que dificultou as ocupações, e os últimos quatro números, desde o nº 48 (Fevereiro de 1977) até ao nº 51 (Fevereiro de 1978), foram cada vez mais difíceis de organizar e por isso saíram com uma periodicidade irregular.
O objectivo era produzir um jornal não-doutrinário que relatasse as ocupações e as experiências de autogestão. Equipas de colaboradores deslocavam-se a todo o país para entrevistar membros das Comissões de Trabalhadores e das Comissões de Moradores, frequentemente entrevistando também trabalhadores de base, e as declarações eram registadas e publicadas na íntegra. Embora isto levasse a repetições por vezes cansativas, tinha a vantagem de não podermos ser acusados de ter cortado ou excluído afirmações com que não estávamos de acordo, ainda que essas afirmações fossem discutidas. Nunca recebemos queixas de Comissões de Trabalhadores que achassem que as suas declarações tivessem sido deturpadas, e todos sentiam que aquilo que haviam dito fora reproduzido fielmente, mesmo se fosse contrário à orientação do jornal. Além disso, muitas das empresas ocupadas publicavam naquela época os seus próprios boletins ou panfletos, onde se discutiam as questões candentes no interior da empresa, e muitos destes boletins foram reproduzidos na íntegra e não apenas sob a forma de citações parciais, como era feito por outros jornais, de acordo com as suas ideologias. Os colaboradores do Combate esperavam que, através de todos estes relatos, os trabalhadores que se encontravam em situações similares aprendessem com os seus companheiros e pudessem contribuir para o avanço do movimento e para a formação de frentes comuns, ou pelo menos que se estimulasse o relacionamento entre os vários grupos de trabalhadores. Com este objectivo o Combate organizou também mesas-redondas entre trabalhadores de diversas empresas
O objectivo do Combate era divulgar as lutas dos trabalhadores e as suas formas de organização, tanto na indústria como no comércio e na agricultura, no norte como no sul do país, bem como as lutas nos bairros. Além disso, o Combate dava relevo a todas as lutas contra a disciplina militar, especialmente importantes num contexto em que as forças armadas estavam directamente envolvidas no governo e beneficiavam de um enorme prestígio por terem derrubado o regime fascista. O Combate também dava relevo às lutas dos trabalhadores noutros países e praticamente todos os números continham notícias acerca destas lutas.
Em todos os números se destacavam os problemas das Comissões de Trabalhadores. Por exemplo, o Combate nº 13 (Dezembro de 1974) citava um trabalhador da Setenave, os grandes estaleiros navais de Setúbal, dizendo: “A última AGT não me interessou nada, discutiram-se problemas que não interessavam aos trabalhadores, só se atacaram partidos e pessoas. – Tu és do MRPP, tu és do PRP e por aí fora... e nada de interesse para o que estava em causa. [...] Eu como trabalhador e pertencendo à oposição, entendo que as críticas devem vir única e simplesmente da parte dos trabalhadores pondo de parte qualquer partido político, e não foi como membro desse partido político que eu ataquei o CTS mas sim como trabalhador”. Outro trabalhador entrevistado salientou que a Comissão fora revocada porque “confraternizara” com a administração e disse: “Quando surja qualquer problema devem ser os trabalhadores atingidos e em conjunto com as Comissões de Base e o CTS a decidir das acções a tomar para que o CTS vá junto da Administração reivindicar e não ter que ser o CTS só a resolver.” Estes eram alguns dos problemas básicos que as Comissões enfrentavam e para os quais o Combate procurava chamar a atenção.
O movimento revolucionário português nada ficou a dever aos partidos políticos esquerdistas, que na generalidade se deixaram surpreender completamente pelos acontecimentos. O Partido Comunista, muito influente nos governos militares de 1974-1975, tentou reforçar a embrionária burocracia sindical em detrimento das Comissões de Trabalhadores e tentou pôr cobro ao movimento autogestionário e promover a sua própria modalidade de capitalismo de Estado assente
Para o Combate, mais do que as reivindicações específicas feitas pelos trabalhadores, o importante eram as suas formas reais de organização espontânea, porque víamos nelas a base da democracia operária e o meio de destruir as hierarquias do capitalismo de Estado. Não pretendemos com isto subestimar as reivindicações, que resultam de situações reais, mas queremos insistir na relação dinâmica entre essas reivindicações e as formas democráticas (ou não democráticas) como elas são prosseguidas. Alguns dos boletins publicados por empresas em luta e reproduzidos no Combate estavam escritos numa linguagem e com uma lógica que sintetizavam em poucas palavras os problemas do capital e que os exprimiam espontaneamente. Lê-se num dos boletins da Efacec-Inel: “As nossas lutas são justas e a greve neste momento é uma das formas de fazer ouvir a nossa voz. É por isso que nós nos devemos organizar não só na luta contra este ou aquele patrão, nesta ou naquela fábrica, mas na luta contra o sistema capitalista”.
Foi por se ter concentrado nas lutas nas empresas, nos quartéis e nos bairros e por ter examinado as suas formas de organização que o Combate conseguiu aperceber-se muito cedo do declínio do movimento. O facto de uma Comissão ser eleita por uma assembleia de trabalhadores numa situação de democracia aberta e de, em princípio, ser responsável perante aqueles que a elegeram e poder ser substituída se a sua actuação não correspondesse às exigências da base não significava que as coisas acontecessem sempre desta maneira. Já no Combate nº 15 (17 de Janeiro de 1975) os colaboradores do jornal manifestaram a sua preocupação pela burocratização de muitas Comissões de Trabalhadores e pela ausência de uma federação de Comissões e tentaram analisar as causas profundas desta situação negativa. E em Julho de 1975, quando os comentadores eram unânimes em afirmar que se vivia “o longo Verão quente”, o editorial do Combate nº 27 diagnosticava os sintomas de um crescente desinteresse por parte dos trabalhadores de base e o isolamento crescente das Comissões de Trabalhadores, bem como a incapacidade de se formarem organismos coordenadores destas Comissões. Quando o golpe militar de Novembro de 1975 pôs termo à hegemonia do Partido Comunista no governo e destruiu o que ainda restava do processo revolucionário, os editoriais do Combate, contrariamente ao que sucedeu então com a maior parte da imprensa esquerdista, afirmaram que se tratava de um reforço da democracia capitalista e não de qualquer regresso ao fascismo. A lucidez política de que o Combate repetidamente deu provas deveu-se ao facto de manter um estreito contacto com o movimento de base e de se preocupar acima de tudo com as formas de organização espontânea dos trabalhadores.
A verdadeira dicotomia no movimento operário daquela época era a cisão entre as Comissões de Trabalhadores e os sindicatos. Os sindicatos pouco mais eram do que um elo de ligação entre patrões e trabalhadores. Em 1974 existiam cerca de 4000 sindicatos espalhados por todo o país, organizados por profissões e totalmente desacreditados em virtude da sua anterior relação com o regime fascista. Na Lisnave (estaleiros de construção naval) havia 13 sindicatos, na Mabor (fábrica de pneus) havia 23, na TAP (companhia aérea) havia 15. Os únicos sindicatos “fortes” eram o dos funcionários bancários, que no 1º de Maio de 1973 tentara organizar uma manifestação em Lisboa, e o dos assalariados agrícolas, que formavam o eixo da Intersindical, dirigida pelo Partido Comunista. A resposta imediata dos trabalhadores foi a convocação de plenários que elegeram Comissões de Trabalhadores, representantes da base. Em Outubro de 1974 havia 2000 Comissões, difundidas por todo o sistema económico. No Combate nº 10 (8 de Novembro de 1974) encontra-se um relato dos acontecimentos na Propam (uma padaria industrial empregando cerca de 150 trabalhadores e que sob muitos pontos de vista representava a situação típica das pequenas empresas). “Nós aqui temos 20 sindicatos. [...] Ao princípio apareceu uma comissão de trabalhadores ‘ad-hoc’ que apresentou inicialmente o tal caderno reivindicativo de regalias monetárias. Após a confirmação de que [...] a luta tinha de ser encaminhada noutro sentido, [...] um plenário de trabalhadores elegeu uma comissão inicialmente composta por cinco trabalhadores, aqui da fábrica. Posteriormente os escritórios aderiram e concordaram com a comissão.” Os trabalhadores da Mabor (fábrica de pneus na Lousada) escreveram um longo manifesto (ver Combate nº 5, 26 de Julho de 1974) onde concluíam: “Hoje sabemos que a nossa luta faz parte da luta que todos os operários travam contra todos os patrões onde quer que a exploração destes se exerça sobre quem tudo produz e pouco recebe. [...] Hoje sabemos que só quando todos os explorados se unirem contra os exploradores conseguiremos vencer total e definitivamente!”.
Houve várias tentativas de constituição de uma federação unitária de Comissões de Trabalhadores, fora do âmbito dos partidos políticos, que todos eles desejavam aproveitar os acontecimentos. A Inter-Empresas, formada em Dezembro de 1974, acabou por se fragmentar
Do ponto de vista do Combate, a cisão fundamental na sociedade portuguesa após o 25 de Abril de 1974 opunha, de um lado, as várias modalidades de capitalismo de Estado e, do outro, as tentativas de reforçar o poder directo dos trabalhadores de base, sem recorrer para isso ao aparelho de Estado e desenvolvendo a autonomia organizativa e a autogestão económica. É claro que o verdadeiro poder era detido pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), responsável pelo golpe de 1974, e desde o início as forças políticas tentaram obter o controlo desta instituição. O general Spínola, um ex-fascista que havia criticado a política colonial do antigo regime, foi uma mera figura decorativa depois do golpe, até revelar as suas verdadeiras intenções no fracassado contragolpe de Setembro de 1974 e ter de se afastar.
As diversas facções no interior das forças armadas reflectiam as ambições de projectos e partidos fundamentalmente defensores do capitalismo de Estado. Uma facção do exército (baseada na 5ª Divisão) controlada por Vasco Gonçalves, que por sua vez era controlado pelo Partido Comunista, recorreu a sucessivos governos militares para instalar o capitalismo de Estado (através de nacionalizações), e os vários partidos da extrema-esquerda ou colaboraram activamente com este projecto ou pelo menos concordaram com ele. A facção do COPCON, comandada por Otelo Saraiva de Carvalho, controlava as unidades militares mais bem armadas em redor de Lisboa (RAL-1, PM, EPAM), apoiava activamente muitas ocupações de terras e de fábricas e estava aliada a partidos da extrema-esquerda como o PRP, a UDP, o MES, etc. Na prática tratava-se do maior grupo militar, e embora apoiasse em geral os projectos capitalistas de Estado dos governos comunistas, defendia também uma estratégia de “poder popular” com o objectivo de acelerar o processo. O COPCON era convocado para intermediar conflitos durante o chamado “Verão quente” de 1975, sendo então o árbitro da sociedade civil, a sua verdadeira força policial, muitas vezes apoiando activamente as manifestações e as ocupações; a 16 de Julho de 1975, por exemplo, foram enviados três carros blindados para apoiar uma manifestação da Inter-Comissões (habitantes de bairros de lata), com a declaração ‘Trabalhadores dos campos e das fábricas, soldados e marinheiros, unidos venceremos”. Todavia, a própria existência do COPCON enquanto facção de esquerda no interior do MFA reforçava a mística do MFA. “Dar armas à classe operária” era sempre para amanhã, e enquanto a maior parte dos partidos da extrema-esquerda se deixava hipnotizar por esta retórica, o COPCON constituía um verdadeiro obstáculo: enquanto ele existisse para defender a classe trabalhadora, por que razão haviam os trabalhadores de pensar em armar-se a eles mesmos? O COPCON acabaria por ser dissolvido, por ordens superiores, em 26 de Novembro de 1975, e os seus chefes nem sequer piaram.
Por seu lado, o Partido Socialista dividia-se entre aqueles que pretendiam apoiar os governos militares e o Partido Comunista e aqueles que pretendiam um capitalismo liberal de estilo europeu e que para isso conspiravam com a direita e a extrema-direita e com a embaixada dos Estados Unidos. Também eles tinham a sua facção militar, o Grupo dos Nove (cujas figuras principais eram Melo Antunes e Vasco Lourenço), e foi este grupo, sob a chefia de Ramalho Eanes, que triunfou em Novembro de 1975. Embora os sociais-democratas (o PPD) se situassem à direita do Partido Socialista, eles não ergueram grandes obstáculos aos sucessivos governos militares nem aos comunistas, mas tiveram uma certa influência em muitos quartéis e entre oficiais que nunca se haviam identificado com o MFA. Os Comandos em Lisboa eram a sua principal força operacional, mas também eram apoiados pelas chefias militares do norte e por unidades nos Açores e na Madeira. O exército, que constitui sempre a última linha de defesa do aparelho de Estado, estava dividido politicamente consoante opções ideológicas, e na época falava-se da existência de um MFA, um MFB, um MFC...
No final do Verão de 1975, em 21 de Agosto, algumas centenas de soldados e de oficiais de baixa patente reuniram-se num pinhal nas imediações de Braga, uma cidade do norte do país, para criar uma organização de base, os SUV (Soldados Unidos Venceremos). Ainda hoje se pode discutir até que ponto se tratou de uma acção camuflada da organização de extrema-esquerda UDP ou de uma iniciativa espontânea, mas o certo é que ficava patente a ruptura praticamente total da espinha dorsal do aparelho de Estado.
Naquela época o Combate considerava que o capitalismo de Estado representava um perigo maior do que o capitalismo privado, e esta era a orientação principal tanto em termos de actividade prática como de análise política. Se bem que hoje se possa ver que o neoliberalismo e a economia de mercado se converteram na ideologia hegemónica na classe dominante portuguesa (e mundial), a situação era diferente em 1974-1975. Surgia aqui um certo risco de criticar apenas os partidos de esquerda e de considerar a direita como meramente “repressiva”. Nunca devemos esquecer que o capitalismo de esquerda foi terrível historicamente, mas é igualmente certo que o reformismo de direita também é terrível, embora talvez de uma maneira diferente. É interessante observar que o mesmo tipo de clivagens das forças militares está actualmente (2006) a ocorrer na América Latina, onde se confrontam facções de esquerda e de direita, e provavelmente muito se pode aprender através do estudo da experiência portuguesa. Existem grandes semelhanças entre a forma como Chavez e também Morales pretendem recuperar o movimento de base e a forma usada pelo COPCON.
O Combate não tinha membros profissionais, e qualquer pessoa podia colaborar desde que estivesse de acordo com os princípios gerais do seu Manifesto. As tarefas eram distribuídas igualmente entre todos e não existiam cargos directivos; o nome do director, que aparece no cabeçalho do jornal, era fictício e destinava-se unicamente a cumprir um preceito legal. Quem quer que estivesse presente nas reuniões podia dar a sua opinião, e podia votar com a condição de se encarregar de uma tarefa. Se bem que existisse um grupo estável de colaboradores, que se reunia pelo menos uma vez por semana, havia outros que colaboravam só esporadicamente ou que estavam presentes quando se discutiam certas lutas. Existia um grupo no sul (em Lisboa) e outro no norte (no Porto). Sucedia também que trabalhadores de uma dada empresa aparecessem para discutir a sua própria luta e que, assim, ajudassem a preparar o número seguinte do jornal.
Das oito páginas do Combate, sete tratavam das lutas nas fábricas, nos campos, nos quartéis e nos bairros, e uma página era consagrada ao editorial. Embora o editorial fosse discutido por todas as pessoas presentes, é provável que o procedimento tivesse podido ser mais democrático, mas é claro que com as pressões do momento, as circunstâncias políticas em mutação permanente e a necessidade de executar as tarefas e de cumprir os prazos, era só uma pessoa (geralmente a mesma) a encarregar-se da redacção. Retrospectivamente, parece-nos que teria sido preferível pedir a alguns grupos de operários para participarem mais e talvez mesmo para escreverem os seus próprios editoriais acerca dos acontecimentos. De qualquer modo, se a experiência alguma vez se repetir de uma ou outra forma, valerá a pena considerar esta questão.
Até Novembro de 1975, apesar dos obstáculos erguidos ao desenvolvimento das lutas, os trabalhadores tiveram a força suficiente para manter abertas as portas das empresas e para permitir que um vasto movimento político minasse a disciplina patronal. Foi nestas circunstâncias que o Combate nasceu e pôde viver. A queda do movimento operário levou também à queda do jornal, no meio das recriminações internas que são comuns em tais circunstâncias e com alguma (não demasiada) amargura. Com o fim do Combate, cada um dos colaboradores seguiu caminhos diferentes. O importante aqui não é deter-nos neste fracasso colectivo (um fracasso colectivo que talvez fosse previsível, dada a fraqueza da economia portuguesa e as pressões do capitalismo mundial), mas deter-nos nos aspectos positivos de uma experiência muito rica, que aqui expomos para que outros possam aprender com ela. O importante aqui é o movimento operário e não os egos feridos de alguns poucos entre os colaboradores do Combate. Para todos os colaboradores do jornal, tratou-se de uma das primeiras e mais ricas experiências de história oral (se bem que restrita à palavra escrita), além de ser algo em que participaram activamente.
O Combate foi um produto da sua época, quando a internet não existia, as câmeras de vídeo eram raras e não havia telemóveis, por isso em muitos aspectos ele parece antiquado e fora de moda. E é claro que o é. No mundo de hoje o vídeo, a internet e o SMS facilitam a comunicação (como sucedeu com as lutas em França em 2006), mas estes meios não estavam disponíveis no Portugal da década de 1970. Deve ainda dizer-se que desde o seu primeiro número (o último foi copiografado) o Combate não teria sobrevivido sem a ajuda da Comissão de Trabalhadores da tipografia Mirandela e, em seguida, dos trabalhadores em autogestão da tipografia a que ironicamente chamaram Cooperativa Gráfica Confusão, onde o jornal foi impresso.
No início de 1975 os colaboradores do norte abriram no Porto uma livraria chamada Contra a Corrente e começaram a editar pequenos panfletos, tanto impressos como copiografados. A livraria não só era um lugar de reunião para os colaboradores do Combate mas era também posta à disposição, sem quaisquer condições, de outros grupos de tendência libertária ou autonomista. Em Outubro de 1975 os colaboradores de Lisboa abriram também uma livraria, igualmente chamada Contra a Corrente, que tinha os mesmos objectivos. Foram publicados 31 panfletos em língua portuguesa, e ainda alguns em inglês e em francês.
O certo é que ao longo dos 51 números do Combate se encontra um reportório de tudo o que sucedeu no movimento operário em 1974-1975. É um tesouro para os pesquisadores bem como para todos os que se interessam pelo movimento operário daquela época, provavelmente uma das maiores experiências do final do século XX. É nesta perspectiva que apresentamos aqui o jornal, por enquanto só
João Bernardo
José Elísio Melo e Silva
José Paulo Serralheiro
Phil Mailer
Rita Delgado